Como é vestir uma burca*


O MUNDO ATRÁS DA TELA


O visor da burca impede a visão lateral e torna difícil enxergar os pés


A primeira constatação é que ela permite enxergar melhor do que se imagina. À luz do dia, os olhos aprendem rapidamente a ignorar a interferência da trama quadriculada que serve de visor da roupa. Ao menos quando se olha para a frente, dá para ver tudo com clareza. Já a visão lateral desaparece de dentro de uma burca. Olhar para os lados requer virar completamente a cabeça, e o primeiro tropeção ensina que enxergar os pés – assim como os muitos buracos que surgem diante deles nas ruas sem calçada e sem asfalto de Cabul – é outra tarefa complicada para uma mulher nessa situação. É por isso que quase todas caminham com uma das mãos sobre o peito, pressionando o tecido contra o corpo. Só assim conseguem ver um pouco melhor onde pisam. A sensação ao usar a roupa é a de estar dentro de uma barraca de camping, de onde se pode espreitar o mundo sem ser visto, já que ninguém presta atenção numa mulher de burca – você é só mais um ponto azul movimentando-se na paisagem. Até vinte anos atrás, as burcas eram feitas de algodão e plissadas a mão. Hoje, são de poliéster e fabricadas na China. Custam o equivalente a 20 dólares e, ao contrário das antigas, não amassam, não desbotam e não perdem as pregas jamais. Mas são abafadas como o inferno – e causam dor de cabeça, resultado da pressão do elástico interno que prende a peça em torno do crânio. Em compensação, as burcas protegem contra as moscas que sobrevoam os muitos esgotos a céu aberto de Cabul. Embora só as mãos fiquem visíveis, quem quiser perscrutar quem está sob uma burca pode começar prestando atenção na cor do tecido. Quanto mais claro o tom de azul (sempre azul, já que a ideia é não ser original), mais jovem é a mulher que está debaixo dela. Conforme o dia escurece, a visão vai piorando. A quantidade de tropeções aumenta e a sensação de claustrofobia começa a dar comichão nas mãos. Puxo finalmente o véu e descubro o rosto. Burcas podem proteger contra a poeira, a gripe A e o "bad hair day", mas tirá-las – e sentir a lufada de ar fresco que adentra os pulmões – é a melhor parte da experiência.

*Excelente reportagem revista VEJA (Edição 2165).

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